Devaneios Criativos sobre Criatividade

Priss Guerrero/ outubro 18, 2015/ Conversa Fiada


ROCK ON leitores! Aqui quem fala é o Lucas, seu pseudo-gringo favorito. As vezes eu conheço pessoas maravilhosas na internet que proporcionam conversas interessantíssimas, que desafiam a mesmice e a banalidade com reflexões curiosas. Uma dessas conversas ficou tão bacana que resolvi contar pra vocês, amigos leitores!


Tudo começou quando meu amigo Benjiro me perguntou:

Vc já se pegou bolando uma história na sua cabeça, e dai vc vai ver um filme/livro/game/desenho e vê que é basicamente o que vc estava criando, e dai agora se vc resolver fazer algo com essa ideia vai ser considerada plágio?”

Caramba! Isso acontece comigo o tempo todo! Entusiasmado com a descoberto de que este fenômeno acontece com mais pessoas, resolvi hipotetizar que este “plágio” sem intenção possa sugerir algumas idéias. Vou enumerá-las aqui. Eu sei quealgumas estão erradas (ou podem estar), mas vale expô-las só por reflexão. Hipotetizo que:

1. As pessoas já criaram e acumalaram quase tanta informação quanto temos capacidade de criar novas.

Imagine o início da criação cultural humana. Neste primórdio abstrato, qualquer conceito criado poderia ser considerado novo, já que pouquíssimo conhecimento existia. Então, com a invensão de um sistema de linguagem com escrita, começamos a armazenar o conhecimento e idéias já existentes poderiam ser gravadas. Muito tempo depois veio a prença, e depois o armazenamento digital da informação. Quanto mais informação armazenada, mais difícil de criar conhecimento inédito, já que uma quantidade crescente de conhecimentos já existem. Isso poderia acontecer pois, quanto mais rápido temos capacidade de criar conteúdo, mais conteúdo se acumula, e mais difícil fica criar algo novo. Essa tendência é como uma curva exponencial que começa a crescer muito rápido, mas depois vai desacelerando (conhecida como curva de explosão), tendendo a um limite. Estaríamos então neste limite onde é incrivelmente difícil criar algo novo?

2. Tudo que criamos é o resultado da combinação dos significados que aprendemos anteriormente.

Podemos misturar toda a cultura a que somos expostos em combinações realmente inesperadas e criativas, mas somos limitados às mesmas.

(Galera de Humanas, tentem não se apaixonar por mim agora).

Dentro das experiências singulares de cada indivíduo, existem infinitas maneiras de pensar e combinar, mas estas não escapam das experiências em sí – da mesma forma que existem infinitas frações entre 0 e 1, mas elas não são menores que 0 nem maiores que 1 – é um escopo criativo infinitamente incontável, porém ainda limitado. (Galera de Exatas, sua vez de se apaixonar!)

Dessa forma, o processo criativo é, na verdade, o processo de transformação daquilo que já conhecemos. Exemplo maneirinho:

As horcrux do Harry Potter são argumentos narrativos fascinantes. Neste universo de fantasia, o vilão pode dividir sua alma em pedaços e guardá-la em objetos paupáveis! Que idéia bacana. Mas pera, já li isso antes… Já sei! As horcrux são claramente baseadas nos Anéis do Poder, do universo do Senhor dos Anéis.

“Oh não! Seria Harry Potter uma farsa? Uma cópia?”

De maneira alguma. J. K. Rowling foi claramente influenciada por Tolkien, mas as histórias tem propósitos e elementos muito diferentes. Porém, o fato de terem alguns elementos narrativos parecidos sugere que esta hipótese pode estar certa. Mas não para por aí! A saga Senhor dos Anéis é um spinoff do livro O Hobbit, que conta as épicas aventuras do Bilbo Bolseiro. Nestas, Bilbo encontra em uma gruta um anel que o torna invisível quando usado.

Todavia, este é baseado no Mito de Gyges, da República II. Nessa parábola, Platão relata a história de um camponês chamado Gyges que encontra um anel mágico em uma gruta escondida. Com este anel, Gyges pode se tornar invisível, e logo descobre que não seria penalizado por suas ações. Platão então faz um ensáio sobre moral, conciência e escolhas, explorando a possibilidade de agir sem consequências.

“Seria então todos plagiadores de Platão?”

Também não. Esta história é uma releitura de mitos locais que tentam passar uma lição moral de forma narrativa. Criar é ligar o liquidificador de referências prévias, e tanto J.K. Rowling quanto Tolkien e Platão transformaram um conceito no outro para apresentar suas idéias.

Principalmente depois das mídias com alcances de massa, como o rádio e a televisão, um conceito pode viajar sem amarras geográficas em forma de narrativa; depois da internet, tudo fica gravado pra leitores, ouvintes e expectadores posteriores. Sabe-se lá quem  vai ser inspirado a reconstruir uma narrativa para explorar suas próprias idéias.

References… references everywhere!

Essa é a beleza do broadcasting! Dentro deste pressuposto, idéias novas são uma combinação das anteriores; existe uma maneira matemática bacana de entender o problema: imagine que em uma cultura X existem apenas duas idéias. Idéia A e idéia B. Dessa forma, você pode organizar elas destas maneiras:

A
B
AB
BA

Você pode combiná-las da maneira que quiser, mas não tem como escapar disso ou de variações repetidas disso.
Agora, imagine que a cultura X tem 4 idéias: A, B C e D. Já temos muito mais maneiras de cobinálas:
A
B
C
D
AB
AC
AD
ABA
ABB
ABC
ABD
ABAA
ABAB
…..

Agora imagine uma cultura dinâmica como a da humanidade toda, que tem muitas idéias. Existirá tantas maneiras de combiná-las, mas tantas, que vai parecer infinito. Mas não é. E como temos capacidade de armazenar e acumular essas informações, principalmente agora com o advento da “rede mundial de computadores” que deixou mais fácil produzir e disseminar uma combinação nova, podemos chegar em um determinado momento quando teremos tantas combinações já feitas que uma “nova” idéia parecerá muito semelhantes as anteriores.

É interessante pensar que o argumento oposto também pode ser feito: o fato de existir tantas idéias significa uma quantidade exponencial de novas idéias a serem combinadas. Fica o dilema.

3. Talvez não exista uma saída da caverna de Platão.


O mito da Caverna de Platão conta a parábola de prisioneiros que foram criados em uma caverna; nesta, os prisioneiros eram presos de tal forma que apenas podiam ver projeções de sombras na parede da caverna. Por serem criados a vida inteira neste ambiente, os prisioneiros não tem capacidade de imaginar nada além das projeções de sombras, um universo sem cores, binário (sombra e não sombra) e plano, com apenas duas dimensões espaciais: altura e largura, mas sem profundidade. Na parábola, um prisioneiro pode ser liberto; quando isso acontece, este conhece um universo inteiramente novo, multi-color, tridimensional, e grandioso. A pessoa liberta descobre o Dia e a Noite, rios e mares, animais, sociedades inteiras feitas por milhares de outras pessoas. É relevante dizer que esta pessoa não tinha como imaginar este universo enquanto ainda era prisioneiro, já que toda sua realidade se resumia ao interior da caverna e a sombras na parede. Foi necessário libertar o prisioneiro para que ele entende-se o mundo fora da caverna. Mas… e se o mundo lá fora for uma outra caverna, apenas muito maior e mais complexa?

Dessa maneira, você sai da sua caverna pra entrar em uma muito maior. E quando sai desta, entra em uma outra muito maior ainda. Mas sempre está limitado às paredes da nova caverna, por mais longe que estas estejam, nunca poderá criar algo além dos limites impostos pela mesma.

4. Seria a capacidade de criar algo novo matematicamente redutível?

Este é um conceito de reflexão muito antigo que surgiu logo em que o ser humano descobriu que podia observar padrões na natureza e, usando os mesmos, poderia prever o que aconteceria em seguida. Começamos associando os padrões das estrelas no céu com as estações do ano e, desde então, descobrimos um universo inteiramente vasto que pode ser descrito através da matemática. Acho importante deixar claro aqui que quando falo em matemática, não falo da Língua Matemática, sistemas de regras e símbolos que usamos para expressar relações lógicas, mas sim da Lógica em si, que independe da língua usada para ser expressa. Visto o sucesso do uso de padrões lógicos na Física e na Química, e até na biologia, a redutibilidade matemática se torna um questionamento constante: “poderia tudo no universo ser reduzido a uma expressão matemática? É tudo calculável, previsível?”

Acho importante dizer que “calculável” não diz respeito a sua capacidade de calcular algo, ou a capacidade de um computador calcular algo. Não diz respeito à capacidade prática de calcular, mas à capacidade teórica e universal de calcular. Por exemplo, pode existir uma equação tão complexa que levaria um computador bilhões de anos para calcular, ou talvez os nosso computadores atuais nem sejam capazes de tal, mas se existe qualquer possibilidade de chegar em um resultado desta equação independente do custo de recursos que isso gera (tempo é um recurso), esta equação é calculável. Sim, este não é um conceito prático, mas um conceito teórico que só faz sentido no mundo das idéias.

Até a década de 20, muitos achavam que sim, TUDO no universo pode ser calculado. Aparentemente, tudo na Física era calculável. Então surgiu a reflexão de que se o comportamento dos corpos das pessoas seguem as leís da Física, logo o comportamento de uma pessoa também poderia ser calculado, nos mínimos detalhes e nos detalhes mais específicos de um indivíduo.

O XKCD tem uma tira excelente sobre o assunto:


purity


Para calcular o comportamento humano em sua completude, seria necessário:

i. conseguir saber todas as relações, padrões, leis e regras que regem o comportamento deste indivíduo;

ii. conseguir saber todas as variáveis, como experiências passadas, condicionamento, predisposições genéticas, balanceamento químico/hormonal do cérebro, etc;

iii. conseguir saber e expressar todas as relações entre as regras (i) e variáveis (ii) com precisão perfeita.


Independente se conseguimos descobrir i, ii e iii, muitos desconfiavam que o ser humano é matematicamente redutível, só é tão complexo, mas tão complexo, que seria extremamente difícil calcular seu comportamento. Ou seria?

Existe um estudo que consegue prever com de precisão de até 94% se um casal de homem e mulher vai continuar junto ou vai separar. O estudo usa as conversas dos casais como variáveis, especialmente a velocidade, facilidade e intensidade em que pequenos conflitos escalam pra grandes brigas. Mas isso não quer dizer que todo comportamento humano pode ser calculado, muito menos que todo comportamento da natureza pode ser calculado também.

Quando descobriram a Física Quântica, a redutibilidade matemática perdeu muita força por causa da dualidade partícula-onda: uma partícula se comporta tanto como uma onda, quanto uma partícula clássica (um pontinho ou corpúsculo no espaço). Uma vez que descobrimos isso, faltava saber por que as partículas se comportam ora como ondas e ora como corpúsculos. Porém, toda vez que tentavam medir a onda durante seu trajeto, antes que ela batesse no sensor, a onda virava uma partícula no momento da medição. Achava-se que era um problema com o experimento, mas depois descobrimos que a dualidade é real quando encontramos uma forma de vê-la sem interferir em suas propriedades. Em vez de usar sensores sensíveis a luz, usamos sensores sensíveis ao campo magnético.

Mas o que é essa onda? Os físicos achavam que cada ponto da onda representava uma chance maior ou menor de encontrar a partícula, mas que ela estaria sempre em um único lugar. Porém, descobrimos que cada ponto da onda representa uma chance maior ou menor de SER a partícula, como se a existência dela pudesse espalhar em milhares de pontos. Este conceito é extremamente contra-intuitivo. Como pode algo não estar em um único lugar, mas estar em vários lugares? Como pode o fato de ESTAR se tranformar em CHANCES DE ESTAR em algum lugar? Como pode uma existência se espalhar? Muitos duvidaram que isso seria possível pois é diferente de tudo que já vimos na mecânica clássica.

Einstein era um deles e, em resposta ao problema, ele disse que “Deus não joga dados”, argumentando diretamente em favor da redutibilidade matemática. Ele simplesmente não queria acreditar que algo fosse aleatório na natureza.  Neste caso, vale a pena dizer que ele não se referia a um Deus de maneira religiosa, mas mais como “universo”, “natureza” ou ainda “leis da física”. Porém, foi provado que a onda é bizarra mesmo; Einstein se arrependeu profundamente de ter dito aquilo e passou a ajudar a desenvolver a mecânica quântica.

Pra saber mais sobre o assunto, recomendo este artigo.

Tá, então nem tudo pode ser calculado, existe realmente aleatoriedade no mundo microscópico. Mas será que existe também em escala macroscópica? Será que o comportamento humano é aleatório? Pra ilustrar o problema, imagine que um apostador vai apostar se o giro de uma moeda vai dar cara ou coroa. A moeda é lançada e, enquanto está no ar, o apostador escolhe se a moeda vai mostrar cara ou coroa. Se o apostador conseguir medir com precisão a força aplicada na moeda e a trajetória da mesma (variáveis ii), se ele souber física (regras i) e tiver um meio de calcular a relação entre essas variáveis e essas regras (iii), o apostador pode prever o resultado do giro da moeda antes que este seja revelado. Neste caso, a aposta é matematicamente redutível.

Mas e se o apostador tiver que escolher entre cara e coroa ANTES da moeda ser lançada no ar? Neste caso, o comportamento do ser humano que vai lançar a moeda passa a ser uma variável na equação de prever o resultado cara/coroa. O apostador teria que saber TUDO sobre o lançador (ii), todas as regras de comportamento humano que cabem ao lançador (i), e como essas duas coisas se relacionam (iii). Se o comportamento humano tem variáveis aleatórias, a aposta não é matematicamente redutível (ou é matematicamente IRredutível, mesma coisa).

What is Random? – Vsauce

What is NOT Random – Veritasium

 


Como até na Física existe aleatoriedade, não vejo motivos fortes o suficiente pra concluir que comportamento humano é matematicamente redutível. Porém, como a grande maioria dos problemas da natureza são matematicamente redutíveis, incluindo comportamento animal, também não vejo motivos fortes o suficiente pra concluir o oposto. Portanto, mantenho ambas hipóteses em aberto.

Mas o que tudo isso tem a ver com criatividade, com capacidade de criar algo novo?
Vamos revisar bem rapidamente as sugestões anteriores:

1. As pessoas já criaram e acumalaram quase tanta informação quanto temos capacidade de criar novas.

2. Tudo que criamos é o resultado da combinação dos significados que aprendemos anteriormente.

3. Talvez não exista uma saída da caverna de Platão. Você sai da sua caverna pra entrar em uma muito maior.

E agora a parte final:

4.A) Se o comportamento humano for redutível, estamos presos nas sugestões anteriores.

4.B) Se o comportamento humano for irredutível, podemos realmente dizer que é possível criar algo novo.
Quanto maior for o nível de aleatoriedade, maior vai ser a variação nas formas de combinar os significados anteriores (3). Tendo uma aleatoriedade grande o suficiente, podemos combinar conceitos antigos de formas completamente novas, ou até adicionar um conceito nunca antes visto!

Algumas ressalvas:

I. Não vejo uma linha precisa pra dividir um conceito antigo de um novo. O que é algo novo? O que é algo diferente? Qualquer linha é arbitrária. Este problema fica claro na metáfora do Barco de Teseu. Imagine que Teseu tinha um barco que pra fins de discussão chamaremos de Elena, que usava para navegar pelas ilhas gregas. Um dia, o mastro quebrou. Logo, Teseu colocou um mastro novo. Em outro momento, a vela rasgou. Então, Teseu colocou uma vela nova. Em outro momento, um lado do casco furou e Teseu teve que refazer aquele lado. Teseu foi trocando pedaço por pedaço do barco até que todos os pedaços são novos, de cores, tamanhos e materiais diferentes.

O barco final ainda é o mesmo barco, apesar de todas as peças serem diferentes? Mas em qual momento Elena deixa de ser Elena para ser um outro barco? Em que momento eu traço uma linha e digo “antes daqui é Elena, depois não é mais?”

O mesmo acontece com times de futebol. Mudam os jogadores, os diretores, a torcida, até o brasão, mas ainda chamamos tanto o Corinthians de 1915, quanto o de 1965, quanto o de 2015, de Corinthians. Ainda consideramos ser o mesmo time. A mesma coisa com espécies na taxonomia biológica: se tivéssemos um exemplar de cada ser vivo que já existiu, e colocássemos todos eles em linhas temporais que foram se ramificando, não teríamos uma distinção de onde uma espécie acaba e uma nova começa; as únicas duas formas não arbitrárias de separar espécies seriam: dizer que cada ser vivo é uma única espécie diferente, ou que todos são a mesma espécie.

O problema também acontece com idéias narrativas, literárias, de filmes, etc. Se colocar todas as idéias em linhas que foram se ramificando, seria impossível dizer onde uma idéia antiga acaba e onde uma nova começa. Eu exploro bem este problema em um pequeno áudio dramatizado que eu fiz e publicaram nos últimos 10 minutos do SciCast 88. Recomendo.

II. Eu defino criatividade como capacidade de criar algo novo ou recombinar idéias já existentes de forma não antes feita. Pode ser que criatividade signifique algo diferente para você. Tudo bem, não tem problema. Deixa nos comentários o que é criatividade pra você! Eu acho interessantíssimo o quão criativos podemos ser para defirnir criatividade de formas diferentes.

O Vsauce tem outros vídeos excelentemente maravilindos sobre alguns aspectos do problema:

The Zipf Mystery

Did The Past Really Happen?

When Will We Run Out Of Names?

How many things are there?



E você caro leitor? Tem algum devaneio criativo sobre a criatividade?

ROCK OFF!

Share this Post